O aumento das informações à disposição só coloca em xeque nossa habilidade de extrair sentido delas. Acumular fatos não traz mais vantagem como outrora.
Por outro lado, o avanço das mídias sociais só exacerbou nossas tendências tribais e a necessidade de encaixar em grupos. Ideias se tornaram bandeiras e discussões ricas que avançam a sociedade são cada vez mais raras.
Dada esta realidade, a capacidade de ser preciso na comunicação, fruto da clareza de pensamento e capacidade de formar ideias coerentes, cresce em valor rapidamente. Além disso, ser capaz de discussões claras, cujo pilar é a comunicação precisa, pode ser a ferramenta de mudança social mais potente a disposição de cada um.
Este é um fenômeno que tenho visto acelerar no Ocidente bem desenvolvido e deve chegar no Brasil fortemente nos próximos anos, talvez até ecoando o rebuliço da eleição de Donald trump com um fenômeno equivalente em nossa sociedade. É hora de nós, como indivíduos, nos desenvolvermos tanto para prosperar quanto para operar as mudanças que queremos ver no mundo.
Para isso, precisamos dar um passo atrás e começar a discutir comunicação.
Por que não damos importância à comunicação?
Quando entramos na vida adulta, temos uma concepção altamente enviesada sobre como o mundo funciona. Mesmo inconscientemente, enxergamos as situações da vida como paralelo do mundo mais amplo que conhecemos até então: a escola.
Olhando de perto, a escola é um ambiente cujo objetivo é padronização do nível de aprendizado entre um conjunto de alunos com um perfil mais ou menos parecido, tanto intelectual quanto socioeconômico. Há certa variância nas escolhas de vida e na performance escolar, mas no final do dia, se espera de todo mundo concluir o ano escolar e passar para o próximo ano.
Esta não é uma crítica profunda sobre a escola – simplesmente uma descrição da realidade. Lá, as pessoas são mais ou menos parecidas, com vidas parecidas e se entendem por viver no mesmo mundo. Quando saímos da escola, transitamos por contextos diferentes, com exposição a pessoas com backgrounds extremamente diferentes do nosso.
O primeiro grande choque que tive foi perceber o esforço necessário para ao menos se comunicar claramente. Comunicação é algo que tomamos como óbvio, mas de jeito algum é trivial.
Para duas pessoas conversarem fluentemente:
(1) o interlocutor precisa definir o que deseja comunicar
(2) traduzir em palavras
(3) que precisam ser interpretadas pelo interlocutor
É um processo “invisível” quando convivemos no ambiente escolar, já que as palavras significam a mesma coisa para todos, já que todos possuem um perfil parecido. Quando saímos no “grande” mundo, fica claro como se comunicar bem se torna uma habilidade desejável.
Além disso, a maioria das pessoas não consegue “processar pensamentos”. Parece piada, mas 75% dos brasileiros são analfabetos funcionais. A cada 4 pessoas na rua, 3 não consegue interpretar textos ou usar matemática básica de modo crítico. Durante uma comunicação, é provável que a pessoa com quem você esteja falando nem entenda 100% do que você está dizendo se você não se esforçar para ser claro.
Não adianta dar a desculpa de “eu falei, ele que interpretou errado”. Não é assim que responsabilidade funciona – você não pode atribuir responsabilidade para uma parte do sistema que você não consegue mudar.
No final do dia, o interlocutor precisa garantir que a mensagem chegue ao ouvinte. Se você quer ser eficiente e fazer coisas no mundo, precisará se comunicar com pessoas e trazê-las para sua missão – para isso, a comunicação precisa ser sua arma.
A honestidade intelectual constrói o mundo
Do ponto de vista metafísico, nós criamos o mundo ao nos comunicar. Se existíssemos em isolamento, não existiria mundo, pois tudo seria experiência subjetiva (interna e externa). Ao falar, concretizamos um “pedaço” da nossa experiência subjetiva e trocamos com outros em base num referencial compartilhado que aprendemos durante a infância. Alguns exemplos:
No universo do produtividade. Fala-se bastante de definir o que você quer. Uma vez que seus planos estão descritos, eles estão concretos – você tem algo ao qual perseguir.
Aprendizado. Este também é um dos primeiros passos para um aprendizado eficiente. Definir um objetivo claramente ajuda a concretizá-lo. “Aprender inglês” é um objetivo ruim. “Conseguir conversar com nativos no contexto profissional por alguns minutos sem dificuldades” é um objetivo muito melhor, mais fácil de ser perseguido, medido e acompanhado.
Harry Potter e Voldemort. Quem conhece a história de Harry Potter, sabe como naquele universo, as pessoas recusavam a chamar o vilão Voldemort pelo nome, referindo-se a ele como “aquele-que-não-deve-ser-nomeado”. No contexto, por não ser nomeado, ganhava um áurea de poder e medo simplesmente por não ser concretizado na fala.
Sinal de escravidão. Mentir também é um sinal de rendição de seu mundo diante de outros. Essa passagem descreve bem:
As pessoas pensam que o mentiroso ganha uma vitória sobre sua vítima […] O que aprendi é que uma mentira é um ato de auto-abdicação, porque é preciso render sua realidade para a pessoa a quem você está mentindo, fazendo daquele pessoa seu mestre, condenando a si mesmo dali em diante a fingir o tipo de realidade que a visão de mundo daquela pessoa requer que seja fingida… O homem que mente para o mundo é escravo do mundo dali em diante.
A ciência e seu pilar mais importante
Do ponto de vista científico, nosso entendimento de mundo é construído sobre a verdade. Se propagamos uma mentira, estamos corrompendo um pequeno tijolo que compõe todo um castelo de compreensão da humanidade sobre como o mundo funciona.
Isso, inclusive, foi um dos maiores motivadores durante um período conturbado da minha vida. Próximo ao fim da faculdade, estava com muitos problemas para terminar o projeto final. Basicamente, escolhi uma área difícil (simulação computacional de reatores) em um problema novo, para o qual não existia resposta fechada até então. Nem meu professor orientador sabia exatamente como resolvê-lo, ele só desconfiava que era possível.
De modo simplificado, tinha que resolver um conjunto de equações matemáticas bem complicadas, usando ferramentas computacionais específicas para aquilo. Fui até ao departamento de matemática da universidade e não consegui ajuda efetiva de nenhum professor (uma decepção).
Fiquei tão desesperado de passar meses batendo a cabeça no mesmo lugar, andando em círculos, que pensei em simplesmente inventar os resultados. Por ser algo complexo, não acreditava que ninguém ia verificar o procedimento computacional, apenas a resposta. Eu tinha boas chances de me livrar e finalmente acabar com um projeto doloroso.
Depois de considerar a ideia por alguns minutos, deixei de lado; foi bastante tentador no momento. Um dos motivos pelo qual desisti foi uma passagem do livro “Harry Potter e os Métodos da Racionalidade”, que inclusive foi a citação que adicionei ao projeto de pesquisa:
O que nós aprendemos é que existe poder na verdade, em todos os pedaços da verdade que interagem entre si, [na verdade] que você só pode encontrar descobrindo o máximo de verdades possível. Para fazer isso, você não pode defender uma crença falsa de jeito algum, nem mesmo ao dizer que a crença falsa é útil.
Falar a verdade é um ato de coragem
É cada vez mais comum as pessoas defenderem ideias confusas, especialmente em torno de tópicos controversos. Em certos casos, não é relevante, já que a confusão do indivíduo só afeta a própria vida e o torna menos efetivo em alcançar aquilo que deseja, mas não causa nenhum mal ao coletivo.
Contudo, quando as ideias discutidas envolvem impacto na sociedade e na forma como nos relacionamos, é perigoso deixar passar sem debate. Você pode pensar “ah, mas é uma minoria que está defendendo aquela ideia [errada/confusa], não vai causar impacto na minha vida”.
A realidade é que basta 3~4% da população seja intransigente em torno de algum tema para que existam chances reais da ideia virar o novo padrão social. Essa é a “regra da minoria” em sistemas complexos que Taleb discute em seu novo livro, Skin in the Game.
Se você vir algo sem sentido, é essencial falar. Não com uma postura combativa – afinal, ninguém está praticando debate, querendo derrotar o outro – mas de modo explorativo, tentando extrair e esclarecer as bases do pensamento defendido.
Por exemplo, há alguns dias eu estava no evento anual do Papo de Homem e um episódio motivou esse texto. Em uma das palestras, uma pessoa transgênero avançou alguns temas confusos, como: “mulheres são superiores a homens” e “nós oprimimos as crianças ao criarmos elas com manifestações de gênero”.
Ambas ideias são altamente problemáticas (e erradas). A maior parte das pessoas ignorou ou achou “fascinante outra perspectiva”, por ser emitida por alguém de um background diferente. O que no fundo é ótimo – um direito fundamental de qualquer sociedade livre é a liberdade de expressão.
O que não podemos fazer é permitir que ideias erradas/confusas sejam utilizadas para guiar o desenvolvimento de legislação que impacto toda a sociedade, não importa o interlocutor. Por isso, me senti na obrigação de interagir, questionar e tentar clareza para a discussão.
Caso contrário, posso acordar em um mundo onde não vou poder brincar de carrinho ou de bola com meu futuro filho por ser opressão “de gênero” proibida por lei. Pode parecer exagero, mas é um risco real e existe um paralelo claro com o que está acontecendo no Canadá com a Lei C16.
Discussões desse tema em específico à parte e generalizando para a vida, há coragem em levantar e apontar que o Rei está nu.
As vantagens de ser preciso
Uma confusão comum é pensar ser necessário domínio sobre um assunto para ser preciso falando a respeito. Não é verdade. Precisão de pensamento (e de comunicação) é uma função de como você pensa, não sobre qual tema você pensa.
Antes de tudo, é preciso aprender a interpretar conteúdo, o que significa:
(1) conseguir ler/ouvir algo,
(2) ser capaz de extrair as principais ideias e como elas são baseadas
(3) julgar as bases das ideias para ser capaz de discuti-las.
Executar as tarefas acima bem te coloca na frente da maioria das pessoas. De novo, é importante fazer o enfatizar de que 75% dos brasileiros são analfabetos funcionais. Se você não for preciso e eficiente em sua comunicação, é pouco provável que consiga navegar seu dia a dia de modo satisfatório.
O mais curioso é que, em todas as esferas, ninguém vai te dizer “poxa, paulo é um cara legal, ele sabe interpretação de conteúdo e fala bem”. Ninguém vai reconhecer essa habilidade em específico, mas no geral as pessoas irão se sentir levemente atraídas por trabalhar e colaborar com você. Com o tempo, talvez você ganhe a fama de ser alguém que “fala bem”. Ou as pessoas sempre irão buscar sua opinião sobre temas confusos, ainda que você não domine o assunto e emita um “não li nada a respeito ainda”.
No trabalho, vão te dar cada vez mais projetos interessados mas ainda pouco formatados, pela sua habilidade de “concretizar as coisas”, que nada mais é do que ser claro no que pensa e faz (lembra da passagem metafísica mais acima sobre como criamos o mundo ao nos comunicar?).
Como praticar precisão na fala
Para fins de transparência, vou começar falando o que funcionou para mim e concluo com recomendações de por onde você pode começar.
No 3º ano do colegial, eu odiava redação. Literalmente odiava. Sempre fui bom em memorizar conhecimento e manipular os números, mas escrever era uma atividade sofrível. Na época em que fiz vestibular, a nota da redação tinha um peso significativo e, como não tínhamos condições de bancar uma faculdade privada (e eu nem queria), tive que desdobrar para resolver esse problema.
A situação era tão ruim que eu odiava as segundas-feiras à noite, porque toda terça de manhã tinha que entregar uma redação na aula de português. Era um martírio. Para lidar com isso, nas férias de julho daquele ano, assumi um compromisso: vou escrever uma dissertação por dia, todos os dias, não importa o quê. Li brevemente sobre metodologias de escrita, tipos de introdução e de conclusão e comecei. Extraía temas de escrita de todos os lugares possíveis – lembro de até ter escrito sobre a malha ferroviária do Brasil.
Ao final dos 30 dias, tinha experimentado vários estilos diferentes e selecionei as que considerei melhores para meu professor de redação da escola corrigir. O verdadeiro ganho, no entanto, já tinha ficado – peguei fluência no processo de elencar ideias, organizá-las, buscar embasamento de tipos diferentes, e apresentá-las na forma escrita. De lá pra cá, só tenho me desenvolvido mais e mais com a prática – já são 1 ano de blogs aleatórios e quase 7 anos de Estrategistas.
Aqui estão minhas recomendações.
1. Escreva dissertações
Você pode sim comprar um livro de interpretação de textos e fazer os exercícios de lá, mas nada como você se esforçar para organizar suas ideias para ser capaz de reconhecer as ideias nos textos/nas falas do outro.
Dissertações são especialmente poderosas para isso, especialmente no modelo “ENEM / Vestibular”. São longas o suficiente para você precisar “escolher algumas ideias e desenvolvê-las”, mas curtas o suficiente para que você não se perca e ainda consiga rastrear/isolar os pilares do conteúdo (20~30 linhas).
A seguir, você pode apresentar os textos para seus amigos darem feedback ou contratar um tutor para revisar seu conteúdo (é mais acessível do que parece).
2. Leia os grandes clássicos da humanidade
Olhando a fundo, a natureza humana não mudou tanto desde a invenção da escrita, por isso livros clássicos guardam um conhecimento atemporal. Nele você irá mergulhar sobre os sofrimentos, aprendizados e experiência de vida de pessoas que viveram em outro mundo, mas lidavam com as mesmas limitações humanas.
Além disso, com as ficções, você terá acesso a uma gama imensa de experiências humanas, o que enriquecerá seu vocabulário para descrever o que acontece em sua própria vida. Afinal de contas, quem nunca teve dificuldade de se expressar em certos contextos?
Ler clássicos, no geral, amplia seu repertório para isso, aumentando sua capacidade de expressar aquilo que você deseja.
3. Participe de mais discussões significativas
Não me refiro a debates com textão no facebook, isso no geral é bem contraproducente. Quando conversando com pessoas que você já sabe serem razoáveis, leve seu tempo para fazer perguntas, entender a linha de pensamento do outro, como é construída, em que se baseia, etc.
Certos tipos de pessoas (as melhores) apreciam esse tipo de conversa, mesmo em ambientes profissionais. Quando você assume uma postura de investigar, que busca trazer clareza para que o outro está falando e chegar na verdade juntos, a interação fica mais rica.
Um superpoder que você pode obter
Comunicação é uma meta-habilidade, ou seja, é uma habilidade meio, não fim por si só. Os ganhos começam a surgir de modo distribuído na sua vida – mais sucesso em projetos profissionais, discussões mais ricas com pessoas que você admira e comunicação mais fluente sobre temas que lhe interessam.
Quiçá, você irá contribuir com a construção de uma sociedade melhor, com coragem intelectual de desafiar, no âmbito das discussões e usando precisão como arma, ideias que ameaçam nossos direitos mais básicos.