Há basicamente duas vertentes pelas quais você precisa compreender o colapso financeiro de 2008: crise operacional e a crise estratégica. A primeira se refere ao processo de crise: quem perdeu dinheiro, como perdeu dinheiro, de quem era o dinheiro perdido, as atitudes do governo para recuperar a economia, etc. O segundo âmbito, o estratégico, se refere ao porquê. Por que diabos tivemos esse estouro? Por que ninguém viu isso surgindo? Há uma explicação plausível para o fênomeno ser tão interconectado?
As primeiras perguntas, referentes aos “o quês” e “comos” foram razoalvemente bem respondidas pela mídia durante o auge da crise. Afinal de contas, depois que a casa cai (nesse caso, desaba), começam a surgir explicações e culpados para tudo. Entretanto, os porquês nunca foram abordados; é neles que quero focar nesses textos.
Resumo: Como Aconteceu a Crise
Antes de tudo, vou fazer uma explicação sucinta para aqueles que não querem ver o vídeo que já indiquei.
Crise do Subprime em poucos minutos | Link Youtube
Depois do estouro da bolha da internet em 2001, aliado aos ataques de 11 de setembro, para fortalecer a economia o Chefe do Tesouro Nacional norte-americano, Alan Greespan, diminuiu os juros do país para 1%. Isso tornou o crédito muito barato (junto a um aumento geral de crédito no mundo), atraente para quem quisesse pegar dinheiro emprestado, não muito atrativo para quem queria emprestar (pois iriam ganhar pouco). Isso fez com que os grandes bancos de investimento parassem de comprar Títulos do Tesouro americano e buscassem investimentos mais lucrativos. Em paralelo, Alan estimulou o direcionamento dos investimentos para o mercado imobiliário.
Os caminhos utilizados pelos investidores para fazer dinheiro podem ser entendidos aqui; basicamente, eles “se empolgaram” com o rendimento do esquema e afrouxaram nos requerimentos para uma pessoa qualquer conseguir fazer uma hipoteca no banco para comprar uma casa. É isso mesmo que você entendeu: as pessoas hipotecavam casas que não tinham para poder comprá-las, na esperança de que o aumento dos preços dos imovéis (que é praticamente constante desde sempre) fosse equilibrar suas contas.
Esquema bizarro, que veio ao fim quando muitas pessoas declararam falência ao mesmo tempo, não pagando hipotecas, obrigando os bancos a colocarem as casas dos falidos à venda. Como foram muitas casas ao mesmo tempo, a oferta no mercado aumentou em descompasso com a demanda, fazendo os preços cairem. O preço caiu, o banco não consegue vender as casas para cobrir as dívidas da hipoteca dos inadimplentes, levando todo o esquema, até então lucrativo, abaixo. E com ele, foram os bancos, que não puderam pagar suas obrigações. Como muitas instituições financeiras tinham dinheiro investido em Wall Street, bancos americanos vão à falência desencadeando falências mundo afora. Aí está a crise.
Por que a Islândia?
Se estamos falando de crise financeira, por que não começar com a Espanha, ou Grécia, países claramente mais afetados pelo problema? Por que a Islândia, se eu nem sei onde fica esse país? Bem, a Islândia é o caso mais caricato de toda essa crise. O que aconteceu lá foi em proporções tão grandes que ficará fácil para você entender o processo. Uma vez compreendido o que aconteceu lá, podemos olhar para países mais complexos.
Bem ao norte.
Antes de tudo, um pouco sobre o país em si. Um país insular, situado ao norte da Grã-Bretanha, com aproximadamente 320.000 habitantes, dos quais 67% vivem na região da capital. Começou a ser povoada no século IX, o clima da Islândia é temperado para sua latitude (localizada bem ao norte), graças à corrente do Golfo.
“Os Islandeses estão entre os seres humanos mais cosaguíneos do mundo – geneticistas frequentemente usam eles para pesquisa. Eles habitaram uma ilha remota por 1100 anos sem muita mistura com o resto dos humanos” [1]
Em termos de população, o país é isolado. Como o lugar é pequeno, é muito comum casamento entre primos, então todos os islandeses estão conectados com poucos graus de separação. É como se fosse uma grande família. Por exemplo, a lista telefônica da capital do país lista todo mundo pelo primeiro nome; isso porque há apenas 9 sobrenomes em uso na Islândia. Não sei como eles conseguem, já que há apenas 9 primeiros nomes em uso também, no mínimo estranho.
De todo modo, já deu para ter uma noção que a Islândia é um país longíquo, numa ilha, isolado por centenas de anos do mundo. As únicas coisas que o país possui em fartura é calor (devido aos vulcões e fontes geotérmicas) e peixes.
A origem do dinheiro Islandês
Peixes.
Exatamente a pescaria que tirou levou a Islândia de um dos países mais pobres da Europa em 1900 para um dos mais ricos em 2000 (e um dois falidos em 2010). Não ficou muito claro o porquê, mas na década de 70 houve uma crise na pescaria, com experientes pescadores voltando do mar com barcos vazios; por isso, o governo decidiu privatizar o processo. Cada pescador iria receber uma quota para pescar, baseada mais ou menos em sua média histórica.
Se você fosse um grande pescador Islandês teria direito de pescar, digamos, 1% de todo o peixe daquela temporada. Antes de cada estação de pesca, o Instituto de pesquisas marinhas determinava a quantidade total que poderia ser pescada sem prejudicar a sustentabilidade do ecossistema. A cada ano, a quantidade que você poderia pescar mudava, mas a porcentagem era a mesma; o pedaço de papel com sua quota era perpétuo.
Pronto, aqui começa a movimentação financeira no país. Se você não quisesse pescar sua quota, por exemplo, você poderia vendê-la a alguém que queria. Ou melhor, você poderia fazer várias operações financeiras com sua quota: usá-la como segurança para pedir empréstimo a banco, alugá-la por determinados períodos, etc. Foi a primeira experiência islandesa com esse tipo de operação.
De fato, a situação era injusta. Toda a pescaria do país (um recurso público) estava nas mãos de alguns pescadores sortudos. Da noite para o dia, começaram a surgir vários bilionários no país. Com mais dinheiro e menos coisa para fazer (já que muitos nem pescavam, apenas negociavam as quotas), eles começaram a investir em si mesmos. Mais e mais Islandeses foram mandados para fora do país, para estudar no resto da Europa, voltando para o país com PhDs na bagagem.
A Criação e a Quebra dos Bancos de Investimentos
Surgiu então outro problema: o que fazer com todos esses PhDs? Tudo que o país tinha até então era plantas de energia (para aproveitar o calor) e pescaria, atividades inadequadas para homens estudados. Eles devem ter se perguntado: por que não começar a especular no mercado? E foi exatamente o que fizeram.
Pessoas sem experiência financeira alguma começaram a fundar bancos de investimento ou trabalhar como consultores de risco. Simples pescadores estavam assumindo cargos como “assessor em risco do mercado de forex” ou simplesmente trader especulativo. Alie isso com Islandeses bilionários gerenciando esses bancos (com funcionários não-qualificados), você terá o caos.
De início, o dinheiro foi multiplicado assim: os bancos emprestavam facilmente dinheiro no mercado, sem pedir garantias (afinal, todo mundo conhece todo mundo por lá).
Outro gerente de fundo hedge me explicou o sistema bancário Islandês: você tem um cão e eu tenho um gato. Nós dois acordamos que cada um vale um bilhão de dólares. Você me vendo o cachorro por um bilhão de dólares e eu te vendo o gato por um bilhão. Agora não somos mais donos de animais de estimação, mas bancos islandeses com um bilhão de dólares em novos ativos.[1]
Os clientes dos bancos pegavam esse dinheiro e compravam pedaços dos mercados europeus e americano, literalmente comprando ações de bancos, imóveis, companhias de aviação, etc. E o mais curioso: eles compravam negócios sobre os quais não tinha a menor ideia. Um exemplo clássico foi o caso do banco inglês Singer & Friedlander: foi sendo adquirido aos poucos, com Islandeses comprando suas ações. Não sabiam fazendo, nunca visitaram a instituição, mas ainda assim estavam comprando-na. Resultado: depois de ser totalmente adquirido em 2005, o banco foi à falência em 2008.
A Crise Chega à Islândia
Com o estopim da crise nos EUA, empresas Islandesas que tinham comprado ações dos bancos americanos (lembre-se que os Islandeses não tinha ideia do que estavam fazendo e saíram comprando tudo sem nenhum tipo de critério) foram à falência, devido à queda das ações nas bolsas mundo afora. Além disso, a especulação em um nível mundial acabou e as pessoas começaram a enxergar a realidade, o que destruiu a principal fonte de geração de dinheiro dos Islandeses.
Sem poder especular, os bancos não puderam pagar os empréstimos feitos no mercado externo. Começam a quebrar, não conseguem usar o portfólio imobiliário para cobrir as dívidas pois esse mercado também já era. Caos em cima de caos, o mercado de ações despenca 85%, a moeda do país desvaloriza, o que piora a situação para os negócios baseados em forex (boa parte das trocas Islandesas).
Saldo: com o colapso de três grandes bancos, os cidadães se viram responsáveis por uma dívida total de 100 bilhões de dólares em perdas bancárias – algo como 330 mil dólares por cada pessoa da nação. Sem mencionar as dívidas de caráter pessoal que as famílias adquiriram em operações financeiras desregradas.
Qual é a moral da história aqui?
Todo o desfecho dessa perturbação na ordem mundial é caricato na Islândia. Um país sem experiência financeira, com poucos recursos naturais de valor, tem uma explosão milagrosa no sistema bancário (que assumiu quase 100% do PIB do país em 2003). Em 4 anos, os ativos dos 3 principais bancos aumentam quase 1000%. Com certeza tinha alguma coisa errada lá. Por que ninguém notou e agiu?
Primeiro, por que é muito difícil para alguém enxergar que está vivendo numa bolha. Não só em termos econômicos, até mesmo na vida pessoal. Afinal de contas, ninguém dorme saudável e acorda com obesidade mórbida (e barriga enorme): é um processo que acontece aos poucos e não enxergamos e ignoramos. Enquanto você está engordando, fica difícil notar o processo e dá atenção ao aviso de amigos, por exemplo. O mesmo ocorre numa corrida financeira como a Islandesa. E segundo:
Uma das causas da crise financeira global é que as pessoas que a viram chegando tinha mais a ganhar tomando posições curtas (comprando os ativos certos) do que tentando divulgar o problema. [1]
Algumas pessoas sabiam sim que havia algo de errado no mercado; só não era do interesse delas trazer isso a público; preferiram utilizar o que descobriram para ganhar dinheiro com o desastre. Esse é um dos motivos pelo qual a abordagem estrategista é tão atraente: você não pode terceirizar sua compreensão de mundo; você precisa entender o que está acontecendo em sua volta, na maior escala possível. Talvez você não consiga prever colapsos mundiais, mas o conhecimento da dinâmica do mercado global vai te ajudar a superá-los.
Uma frase que resume a situação islandesa:
Quando você pega emprestado muito dinheiro para criar falsa prosperidade, você importa o futuro para o presente. Não é o verdadeiro futuro, mas uma grotesca versão de silicone dele.
[1]Bumerangue: Viagem pelo novo mundo, Michael Lewis.
Excelente explicação. Bem simples.
Obrigado. Aposto que você vai gostar da 2º parte, que estou editando agora.
Essa semana sai!
Perfeito!
“Cidadães”???? Apesar disso, ótimo texto.
Era isso o que eu queria ler, valeu!
Simplório….