A revolução já aconteceu e foi televisionada

A revolução já aconteceu e foi televisionada

Nossa história começa em um futuro não tão distante.

Estamos em uma cadeia? Eu não sei. Tudo o que posso ver é uma sala fechada, bem iluminada e com pessoas correndo em bicicletas ergométricas emparelhadas. Elas formam um tipo curioso de grupo, todos uniformizados. Não conversam entre si, apenas correm de olho no monitor em cada bicicleta. Talvez contando a distância percorrida?

É, pelo que dá para ver, há contagem de distância, mas não está em kilômetros. O que é aquilo, pontuação? Parece um sistema de pontos, vai ver eles estão competindo ou algo do tipo. Ah,  há outros além desses atletas (posso chamá-los assim?). As pessoas desse outro grupo estão vestidas com roupas em cores vibrantes, acima do peso por sinal, fazendo a limpeza da sala. Elas são mal tratadas e desprezadas por quem pedala, isso dá para ver claramente. Curioso.

O tempo passa e as pessoas não saem das bicicletas; elas não fazem nada da vida além de pedalar? Ok, vamos seguir esse rapaz, parece que ele parou o exercício. Foi em uma máquina automática para comprar uma bebida. Huum, ele não usou dinheiro, mas se eu enxerguei bem daqui, alguns pontos foram descontados dele. Os mesmos pontos que ele ganhou correndo na bicicleta? Que lugar esquisito.

O rapaz então segue para o quarto. Toma banho, pagando pela água com pontos; escova os dentes, pagando pela pasta dental com pontos; até mesmo a temperatura da sala é regulada por pontos; tudo descontado dele ao passar uma pulseira que ele tem no que parece ser um sensor. Esse nosso amigo está ok de vida, tem ainda alguns milhares de ponto na conta.

Ah, o quarto dele não é comum: as paredes inteiras são feitas de telas de TV, onde são projetadas coisas. Ele escolhe a programação, ao que parece (pagando por ela). No momento, todas as TVs mostram o vídeo de uma mulher, que pela roupa similar a dele, também faz parte dessa prisão (é uma prisão, certo?). Pelo tempo que ele passa observando ela pedalar, só pode significar uma coisa: está apaixonado.

Ele assiste mais um pouco até cair no sono. No outro dia, um galo projetado nas TVs com um vídeo de nascer do sol acorda nosso amigo. Ele levanta, gasta os pontos habituais para tomar banho, escovar os dentes e comer; quando estava saindo do quarto, recebe a notícia do falecimento do irmão. Ao que parece, ele ganhou todos os pontos que o irmão tinha quando morreu, quinze mil pontos extras (wow, todo mundo está preso?).

Não abalado pela notícia, ele segue para a sala das bicicletas. Ao começar o exercício, ele prefere colocar no canal de televisão para assistir ao show favorito de todos: o canal de talentos. Lá, as pessoas que fossem escolhidas, poderiam ganhar o sonho de todos: a liberdade desse lugar, dessa bicicleta. Parece tudo muito justo: você trabalha para comprar suas coisas e movimentar o mundo (ou a prisão?) com energia, mas se você tiver talento (e pontos para pagar a candidatura no programa), você vai ser escolhido e libertado. Um sistema bem meritocrático.

Claro, se você não pedalar o suficiente, você será esculachado por não fazer sua parte para o sistema e rebaixado ao grupo de manutenção, aqueles foras de forma da limpeza. Ok, nós nunca deixaremos isso acontecer, certo?

O bom é que de vez em quando a sorte até ajuda. Aquela moça linda dos sonhos de nosso amigo, por um caso, começou a conversar com ele. Trocaram ideias por alguns dias, acho que são até amigos agora. Será que ele tem chance com ela?

Bem, acontece que por acidente, nosso amigo a viu cantando e achou sua voz linda. Definitivamente ela deveria se inscrever para o programa de talentos, tinha todas as chances de se ver livre! Não, ela disse; não se achava boa o suficiente. Além disso, precisaria de vinte mil pontos só para conseguir entrar no programa e ela nunca conseguiria acumular isso.

Nosso amigo, claro, foi para cama aquela noite pensativo. Ele estava certo que ela teria chances no programa e ele tinha a quantidade de pontos para comprar o ingresso. Porém, se comprasse, iria ficar muito apertado e precisaria se esforçar como um louco para sobreviver. Bem, por ela valeria a pena, certo? Para vê-la feliz valeria sim. Nosso amigo comprou o ingresso e enviou para ela.

No outro dia, foram juntos para o programa de talentos. Tinha muita gente para subir ao palco, mas por algum motivo, provavelmente associado à beleza dela, nossa amiga foi escolhida. Pouco antes de subir ao palco, lá atrás, nosso amigo conversa um pouco com ela, tentando acalmá-la. Alguém da produção vem e dá uma bebida para ela tomar antes de subir ao palco. Então, ela é chamada.

Na hora de colocar sua linda voz para ação, ela trava. Não está se sentindo muito bem, ao que parece. Meio zonza? Perdeu a noção de onde está, o rosto está um pouco confuso. Os apresentadores do programa estão divididos: alguns querem ouvi-la cantar, outros já fazem comentários grosseiros.

Ela fica lá no palco, sem saber o que fazer direito. Um dos jurados, que é dono de um canal de TV de pornografia, diz que ela claramente não tem talento para cantar, mas daria uma boa atriz. Ao ouvir isso, nosso amigo, apaixoando, fica revoltado. A musa dele ainda lá, no palco, sob luz forte e desnorteada. O jurado cafetão segue dizendo como seria uma oportunidade maravilhosa para ela, alcançar a liberdade, trabalhar poucas horas por semana e finalmente sair da bicicleta.

Com muita pressão e já desnorteada (e aparentemente sem saber o que está fazendo), a musa aceita.

E nosso amigo vai ao desespero. Seu grande amor ao que parece foi levado para ser um objeto pornográfico na televisão. Para todo mundo ver (é, pelo visto não é uma prisão, o mundo inteiro é assim).

Ele se esforça, tenta chamar atenção dos organizadores do programa, mas é tudo em vão. Ele volta para o cubículo, lá para o quarto dele, e se entrega às lágrimas. Isso não sairia barato, ele tinha que fazer alguma coisa. Ver sua musa no canal pornográfico todos os dias também não ajudava a melhorar seu humor.

Então ele começou a pedalar. E a poupar. E pedalou, pedalou como um louco para recuperar o dinheiro. Dias se transformaram em semanas, semanas em meses.

Até chegar o momento em que ele bate a marca de vinte mil pontos. E compra o ingresso de ida ao programa de talentos para si. A diferença desta vez era um pequeno pacote que carregava na roupa – um pedaço pontiagudo de vidro, oriundo de uma das paredes de seu quarto, quebrada num surto de raiva ao voltar da fatídica apresentação de sua musa.

Ninguém nota o vidro quando ele sobe no palco. Já esperto dessa vez, ele engana os auxiliares de produção para pensarem que ele já tomou a bebida que eles servem antes do candidato ir ao palco. Aquilo só poderia conter algum tipo de droga.

Ao subir lá na frente, ao vivo para uma multidão de pessoas pelo mundo afora, ele finge está apresentando uma coreografia que criou. Quando as pessoas se preparam para fazer dele uma escória e interromper sua apresentação, ele puxa o caco de vidro e aponta para o próprio pescoço.

Isso fez com que milhares (milhões? não dá para saber se a Terra inteira é assim) seguram a respiração com a cena inusitada. Nunca antes isso tinha acontecido. Os auxiliares correm para cima dele para removê-lo do palco, para não atrapalhar o programa que está entretendo uma massa de incontável número de pessoas em suas bicicletas agora, mas não adianta; nosso amigo ameaça cometer suicídio ali mesmo, o que seria desastroso.

A que medidas não chega um homem desesperado?

Então, os organizadores do programa o deixam falar. E ele transborda revolta, desgosto e todo o nojo que sente pelo sistema, ali, ao vivo, para todo mundo ver. Fala sobre o talento que sua musa tinha, sobre como ela foi usada para virar atriz pornô, sobre como é ruim ficar preso à bicicleta, sempre atrás de uma pontuação para sobreviver; ele abre o jogo todo.

Quando, extremamente emocionado e lotado de raiva, para de falar. o silêncio se instala. Ninguém se move. Para mim, o sistema foi todo desmascarado ali, para todo mundo ver. Era a hora das pessoas se revoltarem e tomar o poder. E implantar mudanças. E correr atrás de um modo que pudesse fornecer aquela sonhada liberdade para todos.

Mas o silêncio se alongou. E se alongou.

Até que se ouviu uma palma. Todo mundo se vira e o jurado, dono do canal pornográfio, está aplaudindo. Ele aplaude entusiasmado e elogia a performance de nosso amigo. Fala como ele atuou no papel muito bem, dizendo palavras que vinham do fundo do coração. Ele menciona como nesse mesmo canal havia necessidade de algo mais assim, sincero, real, do fundo do coração dos participantes. Das pessoas para as pessoas.

Então, ele oferece um programa de televisão ao nosso amigo! Ele iria ter seus quinze minutos todos os dias para entregar a mensagem para as pessoas lá fora que queriam algo mais cru, mais real, direto das frustrações do dia a dia. Ele poderia inclusive levar o caco de vidro com ele para dar o tom de verossimilhança que ajudou a comover na apresentação.

Nosso amigo, meio perdido, fica ainda mais confuso quando todo mundo começa a bater palmas, felizes por ele, felizes por ele finalmente ter alcançado a liberdade. Perdido, esperando retaliação, querendo ser finalmente livre, ele aceita o emprego.

Daquele dia em diante, nosso amigo viveu com o conforto de uma estrela de televisão e livre da bicicleta. Todos os dias, no horário marcado, ele pegava seu caco de vidro, ligava uma câmera e começava a falar algumas palavras de ódio e insatisfação com todo o sistema, que já nem eram mais tão reais para ele, mas serviam de um bom entretenimento para as pessoas pedalando lá fora.

Depois de alguns meses, ele nem lembrava mais o significado das palavras que dizia, mas continuava a atuar. Sua vida estava bem confortável daquele jeito.

E as coisas seguiram. Nosso amigo atuando, as pessoas pedalando e o sistema rodando.

 

 

O conto acima foi fortemente baseado no segundo episódio da primeira temporada de uma série chamada Black Mirror.

Ao terminar de escrever esse texto, eu fiquei tentado a não fazer comentário algum; simplesmente compartilhar o conto e esperar que a mensagem chegasse adiante. Mas eu não posso correr esse risco, a mensagem é séria demais para que eu não tenha a garantia de que você a compreendeu.

Se você não notou, não se sinta culpado, eu vou soletrar aqui: a revolução já aconteceu, foi embalada e é vendida para você todos os dias como entretenimento. Qualquer paralelismo que você encontrar entre a história do conto e, digamos, programas de televisão atuais não é mera coincidência. Pense bastante no que você viu nesse conto e espere o conteúdo assentar. Garanto que é um dos textos mais importantes que já escrevi no Estrategistas.

Pronto, já fiz meu dever para a humanidade.

  1. “fortemente baseado” é pouco, né? brincadeira! é simplesmente a descrição, praticamente cena por cena, do início ao fim, do episódio a que você se refere.

    1. tadinho dele, se sentiu ofendido pq eu não usei a palavra que ele queria.

      se dar ao trabalho de ler o texto e discutir o ponto principal não consegue, mas apontar o dedo para criticar, é a primeira coisa que faz.

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