Torii Mototada e Uma Lição de Lealdade

Torii Mototada e Uma Lição de Lealdade

“…a fundação do dever de um homem está na ‘verdade’. Além disso, não há mais nada a ser dito.”

Torii Mototada foi um dos generais-chefe de um lorde feudal japonês chamado Tokugawa Ieyasu. Se o nome te parece familiar, é mesmo: já falamos sobre ele em nossa conversa sobre dinastias. Ieyasu foi o fundador de um Shogunato que governou o Japão por quase 300 anos – o que foi possível também graças a Torii, um de seus generais mais leais.

Ele se conheciam desde crianças; serviram e lutaram juntos por toda a vida. Mototada ganhou a fama de ser um exímio general e grande espadachim ao fazer feitos quase impossíveis, como massacrar uma cavalaria inimiga quando estava em uma desvantagem de 5:1. Como sinal de respeito e gratidão pelos serviços prestados, Ieyasu colocou Mototada no comando da importante fortaleza de Fushimi, no sudeste do Japão.

Conforme já discutimos, por volta de 1600 dc, Toyotomi Hideyoshi tinha unificado o Japão e trazido todos os estados sob seu comando.

Toyotomi é uma das figuras mais impressionantes da história: ele saiu de carregador de sandálias até o posto de unificador de todo o Japão. Construiu um Estado forte a sua imagem, entrou para os livros de história em lugares reservados a grandes conquistadores, como Alexandre o Grande.

Acontece que ele comete o erro de buscar expansão além da conta e não consolidar, fazendo com o que o Japão perdesse a guerra para anexar a Coreia. Eventualmente ele morre e o exército se quebra em duas facções: uma leal a ele e outra leal a Tokugawa.

O Castelo de Fushimi era importante não só pelo fato de ter sido a antiga residência de Toyotomi, mas também porque ele bloqueava o único acesso do território de Toyotomi à capital controlada por Ieyasu. Isso significava que esse castelo seria o primeiro ponto atacado na inevitável guerra entre Ieyasu e Toyotomi.

E o ataque veio. Em agosto de 1600. A facção de Toyotomi se direcionava com mais de 40.000 homens para massacrar o castelo – que, alguns relatos apontam, tinha por volta de 2000 homens. Torii sabia que não tinha chance alguma de vencer essa batalha, mas ainda assim resolveu levantar a defesa e segurar a posição o quanto pudesse.

Quando a notícia do ataque chegou aos ouvidos de Ieyasu, ele estava em terras distantes, subjugando alguns povos bárbaros; não havia condições dele chegar a tempo. Por isso, Torii sabia que a melhor maneira de servir ao seu lorde seria atrasando o avanço dos partidários de Toyotomi o máximo possível, já que a capital estaria vulnerável com Ieyasu tão distante. Ele queria expressar sua lealdade e servir de exemplo aos demais partidários de Ieyasu.

O ataque veio no dia 27 de agosto de 1600. As bandeiras do comandante Ishida Mitsunari (que mais tarde veio a trair o exército) apareceram no lado exterior do castelo, com uma quantidade ridícula de soldados – de 10 a 20 vezes o número de guerreiros na defesa. E a batalha começou.

Por uma semana inteira os defensores do castelo batalharam com seus oponentes. Conforme as defesas externas caíam, eles se moviam para muralhas mais internas e continuavam a batalha. Mesmo ao retrair para a torre principal, que foi colocada em fogo, os homens de Torii continuaram lutando bravamente.

Finalmente, no décimo dia de ataque, quando restaram apenas Torii e seus dez samurais mais habilidosos contra um exército de dezenas de milhares de oponentes, as defesas do castelo sucumbiram e Torii Mototada veio a falecer como um heroi.

O ataque ao Castelo de Fushimi custou ao exército de Hideyoshi três mil homens e, mais importante, dez dias que eles não podiam se dar ao luxo de perder. Tokugawa Ieyasu chegou em breve com um exército de 90.000 guerreiros e destruiu a facção de Toyotomi na famosa Batalha de Sekigahara – que, por sinal, é o ponto de partida de um famoso romance histórico, sobre o lendário espadachim criador do estilo de luta com duas espadas, Musashi.

A carta abaixo foi enviada ao filho de Torii, logo depois que este tomou consciência do destino que teria pela frente. Eu ia fazer mais alguns comentários sobre lealdade a seus princípios e seus aliados, mas vou deixar a História falar por si só. Como disse Sebastian Marshall:

Com todo respeito aos vários mártires, ataques desesperados de última hora e defesas em causas perdidas, eu aponto a morte do Torii Mototada como a mais bonita da história.

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[lead_p drop_caps=”yes”]Recentemente, tem havido relatórios de uma revolta na área de Kamigata e que um número grande de rebeldes daimyo que se envolveram nos esquemas malignos de Ishida Mitsunari irão atacar este castelo e estão agora se preparando com grandes forças. [/lead_p]

Por mim, estou resolvido a fincar o pé no castelo e morrer uma morte rápida. Não seria muito trabalho atravessar uma parte da força deles, não importa quantas dezenas de milhares de cavaleiros se aproximassem para o ataque ou por quantas colunas estivéssemos cercados.

Mas não é o verdadeiro significado de ser um guerreiro e seria difícil contar como lealdade. Ao invés disso, eu segurarei as forças do país inteiro aqui, e, mesmo sem um centésimo dos homens necessários para fazê-lo, instalarei a defesa e terei uma morte resplandecente. Agindo assim eu mostrarei que abandonar um castelo que deveria ser defendido, ou valorizar a própria vida tanto a ponto de evitar perigo e mostrar ao inimigo fraqueza não está dentro das tradições de família de meu mestre Ieyasu.

Assim eu terei tomado a iniciativa em causar os outros partidários a serem resolutos, e em avançar o que é certo para todos os guerreiros do país inteiro. Não é o Caminho do Guerreiro agir de modo vergonhoso e evitar morte mesmo sob circunstâncias que não são particularmente importantes. Nem é preciso dizer que sacrificar a vida em favor do próprio mestre é um princípio imutável. Como esse é um assunto sobre o qual pensei com antecedência, eu acho que as circunstâncias que encontro agora deverão ser invejadas por pessoas de entendimento.

Você, Tadamasa, deveria entender bem. Nossos ancestrais tem sido vassalos pessoais de Matsudaira por gerações. Meu pai, governador de Iga, serviu ao Lorde Kiyoyasu, e mais tarde trabalhou lealmente para seu filho, Hirotada. Meu irmão mais velho, Genshichiro, manifestou sua lealdade absoluta e foi morto na batalha em Watari.

Quando o presente Lorde Ieyasu era uma criança e foi enviado a Suruga, o governador de Iga acompanhou ele como um guardião. Mais tarde, na idade de 19, Ieyasu retornou a Okazaki, e o governador de Iga o serviu com lealdade intrespassável, vivendo mais de oitenta anos com inabalável firmeza. Lorde Ieyasu, por sua parte, considerava o Governador como um vassalo sem igual. Quando eu tinha 13 e Lorde Ieyasu, sete, eu estive diante de sua presença pela primeira vez e as bençãos que recebi desde então não devem ser esquecidas por todas as gerações a vir.

Porque Lorde Ieyasu é bem ciente da minha lealdade, ele me deixou a carga de uma área importante de Kamigata como Chefe do Castelo Fushimi enquanto ele avança em direção ao Leste, e para um guerreiro não há nada que poderia ultrapassar essa boa fortuna. Que eu seja capaz de ir adiante de todos os guerreiros deste país e deixar minha vida em favor da benevolência do meu mestre é uma honra para minha família e tem sido meu desejo mais fervente por muitos anos.

Depois de eu ser morto, você deve tomar conta amorosamente de todos os seus irmãos mais novos, começando com Hisagoro, em minha ausência. Seus irmãos mais novos devem merecidamente olhar para você como eles deveriam se espelhar em mim e nunca devem lhe desobedecer.

Conforme eles cresçam, eles devem um por um se apresentar ao Lorde Ieyasu, fazendo esforço com seus próprios talentos, fazer o que forem comandados, estar em bons termos uns com os outros, e permanecer gratos para sempre aos ancestrais, por cujas bençãos nosso clã foi estabelecido e seus descendentes virão em auxílio.

Eles devem estar determinados a se firmar com o clã do Lorde Ieyasu na subida e no declínio, em tempos de paz e em tempos de guerra, e, caminhando ou dormindo, eles nunca devem esquecer que irão servir ao clã dele e ao clã dele apenas. Ter avareza por terras ou em esquecer débitos antigos por alguma insatisfação passageira, ou mesmo temporariamente entreter pensamentos traiçoeiros não é o Caminho do Homem.

Mesmo se todas as outras províncias do Japão estiverem unidas contra nosso Lorde, nossos descendentes não devem colocar o pé dentro de outro feudo até o fim dos tempos. Simplesmente, não importa a circunstância, unam-se com o coração da família – dos irmãos mais velhos e mais novos – se empreguem na causa da lealdade, e mutuamente ajudem e sejam ajudados uns aos outros, preservando o caráter e o empenho em bravura, e sejam de uma mente a nunca manchar a reputação de um clã que não tem permanecido escondido no mundo, mas que ganhou fama em valor militar por gerações, especialmente desde os dias do Governador de Iga.

De qualquer modo, se você vai tomar para sua mente ser sincero em dedicar a vida ao seu mestre, você não terá o menor medo ou tremor, mesmo com o advento de inumeráveis calamidades iminentes.

Eu tenho agora 62 anos de idade. Do número de vezes que eu mal escapei da morte desde que eu estava em Mikawa eu não faço ideia. Ainda assim, nem uma vez eu agi de modo covarde. A vida e a morte de um Homem, a fortuna e a calamidade estão na mão dos tempos, e assim não se deveria ir atrás do que se gosta. O que é essencial é ouvir as palavras dos partidários mais velhos, fazer uso de homens de habilidade e entendimento, não agir de modo adolescente focado nos próprios desejos, e receber as advertências de seus partidários.

O país inteiro logo estará nas mãos de seu mestre, Lorde Ieyasu. Se isso se passa, os homens que serviram a ele sem dúvida esperarão se tornar daimyo pela recomendação dele. Você deveria saber que se tais sentimentos surgirem, eles são inevitavelmente o começo do fim das fortunas no Caminho do Guerreiro.

Ser afetado pela avarice por cargos ou postos, ou querer se tornar um daimyo e ansiar por tais coisas… não vai então começar a valorizar a própria vida? E como pode um homem cometer atos de valor marcial se ele valoriza a própria vida? Um homem que nasceu em uma casa de guerreiros e ainda deposita nenhuma lealdade em seu coração e pensa apenas na fortuna de seus cargos será gracioso na aparência e construirá esquemas em seu coração, vai abandoar a integridade e não refletir mais sobre a própria vergonha, e irá manchar o nome de guerreiro de sua família por gerações. Isso é verdadeiramente lamentável e não é necessário dizer tal coisa, mas você deve levantar o nome de seus ancestrais nesse mundo uma segunda vez. Além disso, como eu já falei para você sobre o gerenciamento dos afazeres de nosso clã, não há necessidade de falar a respeito novamente. Você já viu ouviu o que tinha que ser regulado há anos.

Seja antes de tudo prudente em sua conduta e tenha modos corretos, desenvolva harmonia entra mestre e partidários, e tenha compaixão por aqueles abaixo de você. Seja correto na medida de recompensas e punições, e não deixe que haja parcialidade alguma em seu grau de intimidade com seus partidários, a fundação do dever de um homem está na ‘verdade’. Além disso, não há mais nada a ser dito.

–Torii Mototada

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