O efeito da Rainha Vermelha e como realmente sair do lugar

O efeito da Rainha Vermelha e como realmente sair do lugar

Você já notou como no universo profissional as demandas estão ficando cada vez maiores?

Há 10 anos, saber falar inglês e ter o pacote Office no currículo era um diferencial e tanto. Há 5 anos, saber falar inglês não era mais suficiente: você também teria que desenvolver habilidades “interpessoais” e saber trabalhar em equipe.

Hoje? Você precisa de pelo menos duas línguas estrangeiras, domínio do Office e outras ferramentas específicas, saber se comunicar, saber trabalhar em equipe, ser um líder, ter tido experiência no exterior, dirigir, saber cozinhar, passar roupa, cantar bem, consertar a pia…

As demandas estão alcançando um patamar surreal.

O curioso é que esse efeito de precisar adquirir cada vez mais habilidades para ser capaz de ao menos competir é observado através de outras áreas do conhecimento. E tem até nome: O efeito Rainha Vermelha.

Quem é a Rainha Vermelha?

A Rainha Vermelha é um personagem fictício de um livro do Lewis Carroll chamado “Alice do outro lado do espelho” (sim, o mesmo que escreveu Alice no País das Maravilhas).

Na história, Alice termina percebendo que ela está correndo cada vez mais rápido mas sem conseguir sair do lugar.

Alice não conseguia entender exatamente, ao pensar a respeito mais tarde, como foi que elas começaram: tudo que ela lembra é que elas estavam correndo de mãos dadas e a Rainha estava correndo tão rápido que tudo que ela podia fazer era acompanhá-la: e ainda a Rainha continuava gritando “Mais rápido! Mais rápido!” mas Alice sentia que ela não conseguia ir mais rápido, embora não tivesse mais fôlego para dizer isso.

A parte mais curiosa daquilo foi que as árvores e as outras coisas ao redor delas nunca mudavam de lugar: não importando o quão rápido fossem, elas não pareciam estar passando por nada. “Eu me pergunto se todas as coisas estão se movendo conosco?” pensou a pobre, confusa Alice. E a Rainha pareceu adivinhar os pensamentos dela, pois ela gritou, “Mais rápido! Não tente falar!”.

Eventualmente a Rainha parou de correr e suportou Alice contra uma árvore, dizendo a ela para descansar.

Alice olhou em volta bastante surpresa. “Oh, eu realmente acredito que estávamos correndo sob essa árvore o tempo inteiro! Tudo está exatamente como estava!”

“Claro que está”, disse a Rainha. “O que você queria?”

“Bem, em nosso país,”, disse Alice, ainda ofegante, “você normalmente chegaria a um outro lugar – se você corresse muito rápido por muito tempo, como nós corremos”.

“Um país lento, esse!” disse a Rainha. “Agora, aqui, sabe, é necessário toda a corrida que você tem para se manter no mesmo lugar. Se você quer ir a um lugar diferente, você deve correr pelo menos duas vezes mais rápido que aquilo!”.

A ideia do efeito da Rainha Vermelha foi originalmente proposta pelo biólogo evolucionário Leigh Van Valen em 1973. Ele a utilizou como uma metáfora da “corrida armamentista” entre espécies evoluindo em paralelo.

Para entendermos a ideia original, primeiro vamos discutir brevemente sobre evolução.

Antes: como a evolução funciona

A imagem popular da evolução é um “fenômeno” que tirou o homem dos macacos e transformou no que somos hoje. Quase como um substituto da ciência para deus.

Não é assim que as coisas funcionam.

Espécies diferentes normalmente competem pelos mesmos recursos: mesmas árvores, mesmos rios, mesmos espaços de procriação etc.. Se a espécie Y é capaz de pegar mais desses recursos e procriar mais, ela vai sobreviver porque a espécie X vai ter menos comida, água e proteção, e, por sua vez, menos descendentes.

Por vários motivos, ocorrem mutações aleatórias no DNA das espécies quase o tempo todo. Se uma dessas mutações gerar uma característica positiva (digamos, pescoços maiores para girafas), isso significa que os competidores, que não têm o mesmo pescoço, não vão poder acessar o topo das árvores altas. Assim, as girafas pescoçudas terão mais filhos (também com a mutação, já que o novo DNA é transmitido na reprodução), enquanto os competidores, com menos comida, morrerão.

E é assim que a evolução funciona. Se a mutação (que é aleatória) resultar em uma característica que ajude a procriar mais, aquela espécie ganhou uma vantagem sobre a competição. Se a mutação for negativa (fazer a girafa nascer com 3 pernas apenas, por exemplo), ela vai ter menos filhos (ou nenhum) e os competidores terão a vantagem.

Isso acontece não só com espécies que estão competindo entre si pelos mesmos recursos, mas entre espécies predadoras/presas também. Se o predador ganhar uma vantagem por uma mutação, a população das presas vai diminuir. Ela só vai sobreviver se houver uma mutação que a ajude a contornar a vantagem do predador; caso contrário, sai do mapa.

Agora sim, vejamos a ideia original do efeito.

O efeito da Rainha Vermelha

Francis Heylighen sumarizou bem o que Van Valen propôs:

Uma vez que cada melhoria em uma espécie conduzirá a uma vantagem seletiva para aquela espécie, variações normalmente levam a aumentar a adaptação em uma espécie ou na outra. Contudo, já que normalmente diferentes espécies estão evoluindo em paralelo, melhorias em uma espécie implicam que ela terá vantagem competitiva sobre a outra espécie e assim será capaz de capturar uma porção mais larga dos recursos disponíveis para todos. Isso significa que um aumento na adaptação em um sistema evolucionário vai levar a uma diminuição em outro sistema. O único jeito que uma espécie envolvida em uma competição pode manter a adaptação dela em relação às outras é ao melhorar a si mesma.

O exemplo mais óbvio desse efeito está na “corrida armamentista” entre predadores e presas, na qual o único jeito pelo qual os predadores podem compensar por uma melhor defesa da presa (e.g. coelhos correndo mais rápido) é ao desenvolver um melhor ataque (raposas correndo ainda mais rápido). Nesse caso, nós podemos considerar as melhorias relativas (correr mais rápido) sendo também melhorias absolutas em adaptação.

Contudo, o exemplo das árvores mostra que em alguns casos o efeito total de uma “corrida armamentista” pode também ser uma diminuição absoluta em adaptação. Árvores em uma floresta estão normalmente competindo por acesso à luz do sol. Se uma árvore crescer um pouco mais alto que as vizinhas, ela pode capturar parte da luz do sol delas. Isso força as outras árvores a crescerem mais alto para não caírem na sombra. O efeito total é que todas as árvores tendem a se tornarem cada vez mais altas, embora ainda ganhem em média a mesma quantidade de luz do sol, enquanto gastam mais recursos a fim de sustentar o tamanho aumentado.

“Para um sistema evolucionário,” Heylighen conclui, “desenvolvimento contínuo é necessário para manter a adaptação relativa aos sistemas com os quais ele está coevoluindo”.

Basicamente, em um mundo competitivo, progresso (“corrida”) é requerido apenas para manter a posição relativa (“ficar no mesmo lugar”).

Rainha Vermelha na saúde

No tratamento de infecções, por exemplo. Como nós humanos estamos utilizando antibióticos de modo trivial e incorreto, estamos inconscientemente criando bactérias mais fortes.

Ao usar demais ou usar sem seguir as ordens médicas, selecionamos bactérias resistentes ao remédio, aquelas que passaram por uma mutação que foi aleatoriamente positiva: por coincidência, deu o poder a elas de resistir à medicação.

Assim, mesmo que pareça que você melhorou da doença, umas poucas bactérias resistentes ao remédio estão lá. E passaram para outro organismo mais frágil e iniciarão outra infecção. Dessa vez, o antibiótico que você usou não vai servir mais. A pessoa precisará de um mais forte, que será mal utilizado e deixará viva apenas as bactérias mais fortes. Daí em diante.

Como um todo, a espécie humana precisará tomar remédios cada vez mais potentes (“correr cada vez mais rápido”) para tratar as bactérias e ficar saudável(“manter-se no lugar”). Até que, em algumas décadas, antibióticos devem parar de fazer efeito. Daí estaremos em perigo.

Rainha Vermelha nos negócios

Ao descrever o investimento de capital necessário para manter o posicionamento relativo deles na indústria, Warren Buffet disse, em uma carta de 1985 aos acionistas do fundo que gerencia:

Ao longo dos anos, nós tivemos a opção de fazer altos gastos de capital em operações têxteis que teriam permitido a nós reduzir os custos variáveis de certo modo. Cada proposta para fazê-lo pareceu como uma vencedora imediata. Medidas pelo padrão de testes de retorno sobre investimento, de fato, essas propostas usualmente prometiam maiores benefícios econômicos do que aquelas que teriam resultados das despesas em nossos negócios altamente lucrativos de doces e jornais.

Mas os benefícios prometidos por esses investimentos têxteis foram ilusórios. Muitos de nossos competidores, locais e internacionais, estavam aumentando o mesmo tipo de gasto e, uma vez que empresas o suficiente tivessem feito isso, os custos reduzidos teriam se tornado a linha de base para preços reduzidos pelo mundo.

Vista individualmente, a decisão de investimento de cada empresa parecia ter bom custo benefício e ser racional; vistas em coletivo, as decisões neutralizavam umas às outras e eram irracionais (exatamente como quando uma pessoa assistindo a um desfile decide que pode enxergar um pouco melhor se ficar na ponta de pé). Depois de cada rodada de investimento, todos os jogadores tinham mais dinheiro em jogo e os retornos permaneceram os mesmos.

Como não ser vítima desse efeito

Simplesmente se recuse a correr naquela direção.

Se você está numa situação na qual precisa investir cada vez mais tempo, energia ou dinheiro para obter os mesmos retornos, isso é obviamente um investimento ruim.

Afinal de contas, ninguém seria maluco em ter uma conta poupança em que você precisaria contribuir com 500 reais/mês para que seu saldo nunca caísse de 400 reais.

Saia daquela competição. Encontre um caminho diferente de obter a mesma coisa. Pare de correr, nade. Pegue um táxi. Busque uma direção diferente.

No universo profissional, por exemplo, simplesmente se recuse competir por quem tem o currículo mais completo. Faça networking na área de RH da sua cidade e consiga vagas pelo mercado informal de oportunidades.

Ou vá atrás de uma característica que os concorrentes não terão: crie um site no qual você discute sua área de expertise aplicada à empresa que quer trabalhar. Forneça conteúdo de qualidade na internet para ganhar posicionamento.

Faça projetos de sua área com ONGs, documente os resultados e apresente como argumento de contratação. Na saúde, pare de tomar antibióticos. Ou só tome em casos extremos.

Todas as soluções para contornar o efeito da Rainha Vermelha tem algo em comum: recusar-se a participar em um jogo que todos estão fadados a perder.

Mude de tabuleiro e crie suas próprias regras.

  1. Primeiramente, foi muito legal ler um texto tão cheio de referências biológicas! Meus olhinhos de bióloga brilharam aqui!

    Igualmente legal é ver que, nesse bombardeamento de informações em que vivemos, ainda tem gente com bom senso. Quando li “se recuse a correr naquela direção”, soltei um suspiro de alívio, confesso! É preciso saber muito bem do que está falando para dar um conselho nesse nível. Colocá-lo em prática, no entanto, exige um pouco de esforço até a gente se acostumar a buscar alternativas. Mas vale a tentativa, sempre.

      1. Terei que concordar novamente! E por falar nisso, recomendo muito o livro “As Origens da Virtude – um estudo biológico da solidariedade” do Matt Ridley. Esse livro vai desde os genes, passando pela organização social das formigas e abelhas, até a estrutura social humana com o enfoque no altruísmo e cooperação.

  2. Amei o artigo. Li achando que seria mais um daqueles conselhos nos dizendo que devemos acompanhar o sistema, não importa como, mas tive uma grande surpresa no final.

  3. Texto muito bom! De tempos em tempos eu dou uma relida nos textos do blog e, independente de qual fase da vida eu esteja (faculdade, trabalhando, etc) sempre o teus conselhos e ensinamentos caem como uma luva!

    Este texto me lembrou bastante o livro “A Estratégia do Oceano Azul” que eu comecei a ler recentemente!

  4. Interessante… Mas pensei algo bem diferente sobre a teoria da rainha vermelha…
    Para mim o que ela está dizendo é que: _ no mundo competitivo em que vivemos, quanto mais nos prepararmos e nos diferenciarmos teremos um lugar ao sol. Teremos condições de permanecer no mercado, produzindo, trabalhando. E não ficaremos fazendo as contas pra chegar o dia da aposentadoria e viver miseravelmente reclamando, que o governo não cuida dos idosos.
    Cada um tem que fazer a sua parte senão vai viver como vítima e morrer ressentido com o mundo.

  5. Paulo parabéns pelo texto. As referencias de evolução ilustraram muito bem o propósito do estudo. Tenho uma pergunta. Pegando um atalho, outro caminho, mudando de direção estaríamos nós, no modelo mental apresentado, resistindo aos antibióticos e evoluindo. As mudanças frenéticas farão com que os resultados de nossa mutação tenham curta duração e isso fará com que tenhamos que novamente nos adaptar. Não estamos, dessa forma, correndo em torno da árvore novamente?

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